Highlands: As terras altas da Escócia

Por Cristina Azevedo

No extremo norte da Grã-Bretanha, as histórias de batalhas ainda ecoam pelas montanhas e vales da região mais selvagem da Escócia: as Highlands. Nas terras altas, sobrevive a tradição dos clãs, com sua cultura, seus trajes típicos, a água da vida (o uísque escocês), e o desejo de ver o país independente.
Saindo de Edimburgo rumo às Terras Altas, o Guia apontou para a Ponte de Stirling e explicou: "Aqui, as forças inglesas foram derrotadas em 1297 pelo nosso maior herói nacional - Mel Gibson!" A brincadeira revelava a adoração que os escoceses desenvolveram por este ator e diretor depois que ele encarnou nas telas o herói e mártir William Wallace, em Coração Valente (Brave Heart).
Enquanto narrava a derrota inglesa, o guia deixava transparecer o forte sentimento nacionalista que parece fazer parte de todos os habitantes do extremo norte da ilha. Sempre que se referem à Rainha Elizabeth, fazem questão de ressaltar: Elizabeth primeira da Escócia, segunda da Inglaterra. Isso por conta da ascensão ao trono inglês do Scot James VI, que se tornou James I da Grã-Bretanha após a morte de Elizabeth I - filha de Henrique VIII, que não deixou herdeiros. O fato faz da atual soberana uma legítima representante da dinastia escocesa - tanto que mesmo os separatistas não cogitam destroná-la.
Apesar disso, os súditos do norte anseiam maior liberdade. Embora aceitem a libra inglesa ao negociar, também possuem uma casa da moeda, que imprime os rostos de seus próprios heróis nas cédulas das libras escocesas. Admitiram também o uso do inglês, que pronunciam com forte sotaque, às vezes tornando-se quase incompreensíveis, mas mantiveram o gaélico, que continua sendo visto nos letreiros de algumas lojas e ouvido em determinadas regiões.
O lago Ness se tornou famoso pelo monstro, que, segundo as lendas, habitaria o fundo de suas águas
A diferença entre ingleses e escoceses é percebida até mesmo no tipo físico deste povo alto, geralmente ruivo e bem-humorado, que, mesmo lutando em desvantagem, já foi temido por alguns dos mais poderosos exércitos do mundo. Que o digam os romanos! Depois de conquistar a Britânia, o Império Romano marchou em direção à Caledônia, uma terra habitada pelos pictos, o povo pré-céltico da Escócia. Após sucessivas derrotas, sem conseguir avançar, os romanos desistiram e o Imperador Adriano mandou erguer uma muralha (entre os anos de 122 e 127) para que, pelo menos, os bárbaros não descessem para o sul.
Ao se retirarem, os romanos deixaram uma ilha dividida em duas: uma já marcada pela cultura latina, e a outra, insubmissa e considerada selvagem. Muitos acreditam que venha daí a antiga rivalidade que marca os dois países, cuja fronteira é até hoje a Muralha de Adriano.
Pode-se dividir a Escócia em três regiões distintas. As chamadas Terras Baixas são aquelas próximas à fronteira com a Inglaterra. Apesar do nome, trata-se de um terreno acidentado, com montanhas que chegam a novecentos metros de altura. A Escócia Central é o território mais desenvolvido. Aí estão a capital, Edimburgo, e Glasgow, a cidade mais rica do país. Adiante, mais ao norte, estão os grandes maciços. São as Terras Altas, ou Highlands.
Gaitas de foles nos jogos das Terras Altas (Highlands Games)
O norte da Escócia é contornado por ilhas. A oeste estão as Hébridas, como a bela Skye. Suas montanhas agrestes e cheias de precipícios são muito procuradas pelos alpinistas. Na ilha está o castelo dos chefes da tribo dos MacLeods, citados no filme Highlands - O Guerreiro Imortal, interpretado pelo ator Christopher Lambert. É o edifício, em toda a Grã-Bretanha, que foi habitado por mais tempo por uma mesma família. Ele guarda a misteriosa Bandeira das Fadas, que por duas vezes teria salvado a tribo da extinção, cumprindo o trato firmado anteriormente com esses seres sobrenaturais.
No ponto mais setentrional estão as ilhas Orçadas e as Shetlands, onde quase não existem noites no verão. Numerosas, elas são famosas pela pesca abundante e pela produção de roupas de lã, que assumem padrões distintos de outras regiões do país.
A entrada para as Terras Altas da Escócia é por Trossachs, uma região belíssima, onde as estradas começam a subir as montanhas para contornar bosques, lagos e pequenos vilarejos. Faz parte do folclore local figuras misteriosas, como o touro aquático do Loch Venacher. Foi nessa região que viveu Rob Roy (1671-1734), líder dos MacGregors. Este outro herói nacional, que lutou contra a tirania dos barões, foi encarnado nas telas pelo ator Liam Neeson.
Quanto mais se segue para o norte, mais estreitas são as estradas, cortadas por vales pontilhados de lagos (loch, em gaélico), rios ricos em trutas e em salmões, e precipícios. As chuvas constantes tornam a vegetação de um verde muito intenso, plenamente aproveitado pelas numerosas ovelhas que compõem a paisagem.
Costuma-se creditar à pureza das fontes das Highlands a qualidade do principal produto nacional de exportação: o whisky (uísque) ou uisgebeatha - água da vida, em celta. Um longo processo, que pode durar até vinte anos, mistura a água ao malte (envelhecido em barris de carvalho, que dão a cor castanha da bebida) e ao grain- whisky (mistura de cevada germinada e não-germinada, milho e centeio). Em todo o país são engarrafadas cerca de três mil marcas, das quais apenas cerca de cinquenta são destinadas ao mercado exterior.
Antigo livro dos Clãs
Uma das estradas que levam ao coração das Terras Altas é a Rodovia de Aberdeen, que segue o curso do rio Dee, passando por Ballater. Essa é uma das regiões mais procuradas pelos pescadores, já que o Dee é repleto de salmões. Seguindo, chega-se ao Castelo de Balmoral, residência particular da rainha.
A capital das Highlands é Inverness, na cabeceira do rio Moray Firth. A cidade domina a maioria das rotas que vão para o norte e para o sul do Great Glen, o grande vale que corta as Terras Altas de uma ponta a outra, em diagonal. Além disso, Inverness também é muito procurada pela proximidade com o Loch Ness, onde existiria um monstro - uma espécie de dinossauro subaquático - apelidado carinhosamente de Nessie.  
Acredita-se que em Inverness ficava o castelo de Mac-Beth, que, no século XI, teria assassinado o Rei Ducan enquanto o soberano dormia. O castelo foi destruído por Malcolm Canmore, para vingar o pai morto. Ele foi coroado Rei Malcolm III, mas foi sua mulher, a Princesa Margarida, quem se tornou mais popular entre o povo. Mais tarde, ela seria canonizada e conhecida como Santa Margarida da Escócia.
Com o fim da dinastia dos Canmore, em 1286, a Escócia ficou sob o jugo dos barões, que muitas vezes possuíam terras na Inglaterra, e por isso não contrariavam os interesses ingleses. Foi nessa época que Eduardo I tentou invadir o norte, encontrando a resistência do povo liderado por William Wallace (mais tarde capturado e executado), e depois por Robert Bruce. Este derrotou as tropas de Eduardo II (que assumira o trono inglês após a morte do pai), obrigando-o a reconhecer a independência do país e reinando como Robert I. O filho de Bruce governou por pouco tempo, caindo prisioneiro dos ingleses, assim como a própria Escócia.
Batalhas e heróis não faltam na história do país. Perto de Inverness foi travada a Batalha de Culloden, na qual o Bonnie Prince Charles (o Belo Príncipe Charles Edward) foi derrotado em 16 de abril de 1746. No campo, lápides com os nomes dos clãs marcam as sepulturas dos soldados escoceses, enquanto uma grande pedra indica a posição tomada pelo vitorioso Duque de Cumberland antes da batalha.
Colinas, lagos e castelos enfeitam as paisagens das Highlands.
Entre as edificações erguidas para enfrentar as invasões dos povos nórdicos
está a Fortaleza de Eilan Donan, construída no século XIII.
Ela resistiu aos vikings e ao tempo, servindo de cenário
para o filme Highlands - O Guerreiro Imortal
Charles foi o protagonista de diversas outras lutas. Perto de Tranent, um monumento lembra a Batalha de Prestonpans, onde, liderados pelo príncipe, os highlanders puseram a correr as tropas inglesas. Eles surpreenderam as forças do General Cope antes do amanhecer e ainda compuseram uma canção para ser tocada em gaita de foles, comemorando o êxito.
Tão tradicional quanto a gaita de foles é o tartan, o padrão de tecido que identifica cada clã ou família. As cores e o desenho do xadrez são usados no kilt, a saia de onde geralmente sai uma faixa te tecido que é presa no ombro por um broche. Embora as calças compridas cubram hoje as pernas masculinas, o kilt ainda é considerado uma roupa formal, usada em eventos especiais. O traje é completado por uma pequena bolsa de pele de cervo (que pode conter uísque, camisa branca e meias, além de um pequeno punhal.
A tradição também é posta a serviço do turismo, e as famílias emprestam o padrão de seus tartans para a confecção de mantos, boinas e cachecóis. Açoitada pelo vento e pela baixa temperatura que parecia ignorar o verão, parei para comprar um cachecol feito de lã de cordeiro. Acabei por escolher uma peça de fundo preto com listras em azul-marinho e verde. A etiqueta indicava o nome de Black Watch. Mais tarde, descobri a origem. Ele não vem de uma família, mas de um dos mais duros e famosos regimentos escoceses. Ele foi criado há vários séculos para atuar contra os ladrões de gado, e, como a cor preta predominava nos saiotes, ficou conhecido como a Virgília Negra. A história da Black Watch é contada no Castelo de Balhousie, erguido em 1478, em Perth. Registros do passado sangrento das Highlands estão por todos os lados.
Mas quem pensa que a unificação dos tronos deixou antigas rivalidades para trás, se engana. Os escoceses comemoraram intensamente a vitória de Tony Blair, o ex-primeiro-ministro britânico. Adolescente educado na Escócia, Blair prometeu mais liberdade para o norte da ilha, que agora deseja maior autonomia para o seu parlamento. Um indício de que a situação começou a mudar foi o retorno, em 1996, da Pedra do Destino. Há várias lendas envolvendo a sua origem. Segundo uma delas, a pedra teria vindo da Ásia Central no século IX. Outras contam que foi levada da Irlanda, no século VI. Algumas asseguram que foi confiada a São Patrício por homens santos de Israel; ou ainda que teria servido de travesseiro para Jacó. O certo é que ela era colocada sob o trono dos soberanos escoceses durante a coroação, até que Eduardo I mandou roubá-la, em 1292, para ser posta sob o trono inglês como um símbolo da supremacia sobre a Escócia.
Dizem que a Pedra do Destino abençoa a independência e a formação de nações nos lugares por onde passa. Se for verdade, os ventos da autonomia podem soprar mais uma vez sobre as terras do norte e sobre um povo de heróis que foi vencido, mas jamais conquistado.

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